Texto Miguel Castro Caldas
Encenação Bruno Bravo
Interpretação Ana Brandão, Catarina Mascarenhas, Gonçalo Amorim, Gonçalo Waddington, Peter Michael, Raquel Dias, Sandra Faleiro
Cenário Stephane Alberto
Figurinos Chissangue Afonso
Música Sérgio Delgado
Direcção de produção Mafalda Gouveia
O avarento Ebenezer Scrooge – inspirado na personagem central da obra de Dickens - é visitado pelo fantasma de Marley (seu antigo colega já falecido) que lhe propõe uma viagem redentora ao passado, ao presente e ao futuro. Nas ruas dos mendigos, dos vendedores, das prostitutas, que podem também ser as ruas de Lisboa.
A Christmas Carol de Charles Dickens foi mais um pretexto – e neste caso também um pré-texto - para se fazer um projecto que nascesse neste espaço da Abril em Maio, onde os Primeiros Sintomas também nasceram lado a lado com o Monstro de Frankenstein. O texto do Dickens tem a inocência moral verdadeiramente inspiradora a uma peça original que aconteça no Natal deste mundo de hoje. Onde estamos com o nosso pequeno país, nesta cidade onde também cabe o Regueirão dos Anjos e onde às vezes vêm os sem abrigo conversar. E o que é facto é que hoje nunca é hoje, é sempre o que vem a seguir e o que aconteceu antes. Mas o teatro, mais do que qualquer outra forma de arte, tem a doce pretensão de nos iludir com o presente. E se, levianamente mas para nos entendermos melhor, chamamos ao mundo o mundo de hoje e que está como está, falamos também de vários mundos - os nossos e às vezes os dos outros - mas sem nunca percebermos nada. Também os mendigos, os que passam fome, os drogados e as prostitutas têm cada um o seu mundo, muito distante do meu e que nem sequer habita nesta peça.
A sinopse do A Christmas Carol de Charles Dickens é a de um homem velho avarento e amargurado que é levado numa viagem de três dias, guiado por três fantasmas, um em cada dia, a revisitar a sua vida. No primeiro dia é levado aos natais da sua infância e juventude, como nos morangos silvestres do Bergmann. No segundo dia, mostram-lhe os natais do tempo presente de outras pessoas à sua volta. No terceiro dia, é levado a ver o seu futuro, que é a morte. Com esta viagem, Scrooje é confrontado com o seu percurso, tomando a consciência do homem em que se tornou. Percebe que o seu comportamento ao longo da vida o levará a um fim triste e deprimente. Mas ainda há tempo de mudar, na linha da reforma protestante da defesa do trabalho como única maneira de salvar a alma, ao contrário da ideia católica do arrependimento. Ao assistir à sua própria morte, Ebenezer Scrooje assusta-se e resolve modificar o seu comportamento e torna-se num homem afável, tratando bem o seu empregado, a sua família e os pobrezinhos da rua. Existem inúmeras adaptações deste texto de Dickens, para cinema, televisão, livros infantis, em desenhos animados, etc.
Esta peça de teatro que os Primeiros Sintomas apresentam não tem quase nada do texto de Dickens. Segue e desvia-se vagamente da sinopse acima enunciada. É um texto feito quase a partir do zero e que ao longo da sua construção tomou consciência de duas coisas: uma foi perceber que as ferramentas que Dickens utiliza para valorizar o natal são as mesmas que podemos usar para pôr o mesmo natal entre parêntesis. A sua personagem, Ebenezer Scrooje, que evolui de homem rico avarento e amargurado para homem rico generoso e catita, faz-me pensar, com os meus olhos dos dias de hoje, que o primeiro Scrooje amargurado com o natal tem uma certa razão antes de evoluir para o segundo Scrooje generoso, que me pareceu até um bocadinho hipócrita, tendo eu ficado sem perceber muito bem se a esmola que ele dá é para salvar o mundo ou para se salvar a si próprio.
A segunda coisa foi o problema da viagem de Scrooje pelo tempo. Colocar os três tempos (passado, presente e futuro), que Dickens separa em três dias, todos no mesmo plano e a falarem uns com os outros. Aqui aparece a questão da evolução da personagem, tão cara à narrativa, que me levou a lembrar-me da célebre carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, explicando a génese dos heterónimos, em que depois Casais Monteiro responde, dizendo-lhe que acha muito bem mas que não nota evolução na sua obra, a que Pessoa lhe responde a também célebre frase: “eu não evoluo, eu viajo".
A viagem do vagabundear, do andar de um lado para o outro, do não ir a lado nenhum, do chegar ou não chegar. Entre um natal e outro natal. Entre o nado e o nada.
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Há frases, que eu saiba, tiradas a Alain Corbin, Alberto Caeiro, Giorgio Gaber, Jorge Luís Borges, Sebastião da Gama, aos Sem-Abrigo de Lisboa, ao Diário de Ana Brandão.